sou

sou.

nunca esquecer
sou.
nunca ceder
aos outros
presos
que olham feio
que patrulham
que se incomodam
sorrindo
sou.
mas e se eu comer demais
se tiver ressaca
se de repente me sentir
de novo
a mesma de sempre
tão igual
a todas as outras
pessoas pela metade?
onde vou achar
aquela que tão penosamente busquei
mas que penosamente não se acha?
sou.
onde ela?
sou.
respiro
mas na calma procurada
ainda falta
a alegria intensa
a velocidade
sou.
não pensar
nunca ceder
sou.

 

respiro

ouvir é um processo.
primeiro recuso.
não quero saber...
mas sou eu
é de mim que falam
sim quero saber de mim
então paro para ouvir
o que dizem?
ah sim é verdade
então é verdade
é preciso mudar
respiro
mas deixar ir
leva tempo
leva trampo
respiro


..

(não) sou casa

minha casa sou
grades na janela
me afastam da floresta que vi crescer
livros sobre minha cabeça
meus quadros na parede
caminhos interrompidos em toda parte
muitos depois eu vejo por aí

minha casa não é minha
muitas mãos mexem
trocam as coisas de lugar
largam tudo pra eu resolver
mas não resolvo problema dos outros
e tudo como está fica
anos a fio

a vontade?
fazer uma mochilinha
pegar o essencial
e picar mula
deixando tudo pra trás

ou então reutilizar:
"o centro cultural casa burguesa"
livros viram biblioteca
roupas são usadas no teatro
nas festas da comunidade
as mulheres podem retirar peças
que nem livro
alegrar a vida cotidiana
tem música, filmes, instrumentos musicais
mesa para desenhar pesquisar reunir
canetas, tintas, massa de modelar

ainda tem louça inglesa e toalhas rendadas
uma ou outra travessa de prata
são as coisas que me prendem
ordenam viva essa vida.

mas é cheia de cores e movimento
tudo está aberto e disponível
tudo gira em torno de um centro
todos se vendo e se falando
em permanente comunicação
fui eu que criei isso
acho
todos em franca colaboração
sabendo de todos todo o tempo...

vou criar uma solidão para mim
(eu posso)
só em mim é real
(eu tenho que criar)
sem ela meus filhos
não irão crescer
(é urgente)

só sendo só
não sou casa
nem casar
sou

(não) sou carne

1.
sou grosseiramente material
feita de carne e suco
movida a sonhos juvenis
perdida ainda na floresta
e achando graça...

sou crua como a matéria
e a arte não é também matéria?

2.
a carne da arte é a práxis
ação na matéria

a teoria só existe
separada
por causa da divisão social do trabalho
é um comando
para as classes trabalhadoras
façam de acordo com o que pensei
quem?
os filhos que estudam (ricos)

por isso que a chegada dos pobres
na universidade
muda a arte

a arte os inclui
reconhecendo em si
os mecanismos internos
de exclusão
e de mando
transforma-se
busca sim utilidade
inserção

3.
o artista é sustentado por sua classe social
ele tá condenado a ela
que linguagem ele fala?
quem entende sua estética?
como ser livre desse jeito?

4.
o artista quer um lugar
sem jogar o jogo sujo do real
privilégios de classe?

5.
vou lá jogar
sei jogar
(me assusto com a certeza
de que sim sei
e o jogo é mesmo sujo
e essa sujeira na verdade conheço bem
por isso me sustentam
por isso quando falo falo deles..

6.
meu faro de artista diz
vai no difícil
difícil é o prazer
exposição total

que nem as atrizes
que fazem da nudez no palco
uma liberação ritualística,
desse portal pra lá
não há mais pudores
é o trabalho

7.
o trabalho é explicitar
o que tenho a dizer?
sou carne
mulher
que valho?

o que a sociedade
vai cobrar
das mulheres
em troca da emancipação política?

8.
será preciso defender a liberdade
fazer a crítica ao casamento
alegrar o sexo
triste no consumo
frágil no sofrimento

9.
mas imagino mundos melhores
nele não sou carne
sou eu
inteira.
não vendo minha matéria
nem entranha nem pele
mas junto a outros saberes
esse meu
e produzimos
para nós mesmos


..